segunda-feira, 27 de março de 2023

UM NAVIO EM CHAMAS NO RUMO DO CORAÇÃO

CAPÍTULO VI




"Meu amado amigo! Não há nada neste mundo que faça
 o julgamento da amizade mais verdadeiro do que o momento da morte,
 para mostrar a atenção plena do amor e da amizade 
da qual fará você agora uma perfeita experiência, 
desejando que você mantenha o meu amor prezado,
 morrendo pobre, como se eu tivesse sido infinitamente rico."

                                                                                                   


A pomba veio voando, desde o campanário, no sentido da terra, mudando de direção, em pleno ar, o voo rasante transformando-se em repentina ascensão rumo ao telhado do Colégio dos Jesuítas. Cortou trajeto sobre as telhas da construção, indo pousar no beiral de uma das janelas laterais do andar de cima. Arrulhou, baixinho, como cantiga de ninar que não se completa, ameaçando entrar; adoravelmente, volteando uma, duas vezes, e voando, de novo, para a imensidão do pátio, lá embaixo. 
Lá dentro, Thomas, adormecido sobre o leito, assustou-se, sem despertar de todo, erguendo-se nos cotovelos, deixando-se cair sobre o lençol, caindo no sono, de novo, braços e pernas abertos, as mãos pendendo sobre as laterais da cama singela. A camisa de seda, em desalinho, absorvendo o suor que o envolvia completamente. Seu rosto estava sereno sob toda aquela transpiração que escorria até os cabelos, molhados e loiros, uma gota vindo morrer na curva do lábio, sob o bigode. Olhar para ele, assim, seria experimentar uma paz que só pode ser trazida pelos sonhos felizes de alguém que dorme sem arrependimentos, pelas cores suaves de uma aquarela nas mãos de um artista qualquer, ou pela esperança de um coração ardoroso que nunca desiste.
O barulho do mar era, apenas, um ruido de ondas, na distância, por detrás das paredes do colégio, quando as horas avançaram sobre todas as coisas; o pôr de sol, cheio de tons rosados, derramando-se na imensidão, invadindo cada recôndito até que as trevas estirassem seu manto de estrelas. 

O Colégio dos Jesuítas estava silencioso demais, naquela noite, como se um sono divino se estirasse sobre todas as celas, todos os homens. O tempo avançou atropelando a escuridão, entrando pela madrugada, perpetuando o silêncio. Thomas estava relaxado demais, tudo o que ele precisava era de algumas horas de sono, muitas, em terra firme, longe das tempestades, das adversidades e temperaturas extremas do alto-mar. O calor, embora forte, não o afetava tanto, apenas fazia aumentar seu sono, tornando-o lânguido demais para alguém sempre muito ativo. Uma brisa suave avançou, um pouquinho mais, através da janela aberta, refrescando o aposento.
De repente, seu grito fez-se ouvir, ecoando pelos corredores e celas, pela escadaria que conduz ao térreo; meio abafado, talvez, não suficientemente alto para ser entendido como um pedido de socorro; tateou o revestimento, morrendo na acústica das paredes.

Thomas estava, finalmente, desperto. Olhava, com incredulidade, para os dois indígenas, diante dele, raciocinando se estaria, ainda, sonhando. Os dois pareciam, naquele momento, extremamente selvagens mas, estranhamente, nada agressivos. Um deles estava falando, ou tentando expressar-se, do melhor modo que podia, na língua dos portugueses; a imaginação os teria enrolado em uns panos. Tentando, desesperadamente, fazer-se entender, lançara-se ao chão, de joelhos, implorando pela ajuda de Cavendish: sua condição de escravo dos portugueses, a tortura à qual era submetido todos os dias de sua miserável vida fazia com que não tivesse vergonha, nem com que se sentisse humilhado diante do inglês. 
Haviam fugido quando seus algozes escaparam sob o fogo dos ingleses. Estavam livres, agora, mas sabiam tratar-se de uma condição temporária pois, quando Cavendish e seus homens fossem embora, os portugueses voltariam para escravizá-los, bem como a seu povo.

Thomas Cavendish apertou o bigode, como se quisesse prolongar o tempo em um imenso momento de confusão. Poucas vezes não saberia como agir, quando pego de surpresa, e este era um desses momentos. A camisa desceu, suavemente, quase até os joelhos e ele tentou mover-se no apertado e discreto aposento dos religiosos que ocupara desde a chegada. Era o dia de santo Estevão, vinte e seis de dezembro.

Os índios haviam invadido por um dos muitos caminhos que ligavam o Colégio à praia, pelos fundos; conheciam bem as passagens por dentro da construção. Alcançaram a cabeceira de Thomas sem muito esforço e poderiam tê-lo matado, se quisessem. De joelhos, ainda, o selvagem, como a criança inocente que, talvez, fosse, afirmou que não estava, ali, para ofendê-lo mas para implorar ajuda; trazia perus e galinhas, como presentes.

Thomas segurou o índio pelos braços, forçando-o, gentilmente, a levantar-se. O índio já estava de pé quando ele começou a rir muito. Riu de toda a situação; riu de si mesmo. Riu por sentir-se tentado a ficar ali e viver uma vida, desafiadoramente, selvagem. Sabia que seu destino era outro. O que ninguém sabia é que o mar entrara em seu sangue. Não era a aventura que o seduzia, não era o ouro, tão necessário no reino e suas tentações. Estava viciado naquele mar que, na maior parte das vezes, apresentava-se fora de controle e mortal. Era um vício e ele sabia disso. Sabia que morreria no mar, algum dia, quando fosse velhinho demais para comandar uma flotilha ou mesmo um navio; ou mesmo um simples barco a remos. Ele, Thomas Cavendish, sabia que morreria no mar. Algum dia....







segunda-feira, 5 de março de 2018




FORTE DE SÃO JOÃO DA BERTIOGA

                                                  
                                                Detalhe do óleo de Benedito Calixto, "Partida de Estácio de Sá", 
                                                    representando o que seria o Forte de São Tiago em 1563.

quinta-feira, 1 de março de 2018

THOMAS CANDISH (CAVENDISH)

                 "There is nothing in this world that makes a truer trial 
               of friendship, than at death to shew mindfulness of love and 
                friendship, which now you shall make a perfect experience 
               of: desiring you to hold my love as dear, dying poor, as if 
                     I had been most infinitely rich." Thomas Candish 

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

CAPÍTULO 01 Thomas

                                                                      


                                       I



Eu entendo que tudo teve de ser assim, que nada poderia ser alterado, que, se pudesses, terias escolhido morrer no mar, porque não haveria outra forma de ser fiel a si mesmo, não poderia haver nada além do sonho de circum-navegar o mundo, como o sol, com o sol; e eu, que escrevo agora sob a tua palavra, tento sossegar meu coração, agarrando o teu sonho como espada tombada, tornando-o meu, como se já não o fora desde sempre, eu também a querer circum-navegar a Terra, como o sol, com o sol, para que a minha vida tenha um propósito, e que esse propósito, a partir de agora, seja manter-te vivo na lembrança desse globo sem memória que conquistaste por mais de uma vez, para que ninguém jamais esqueça aquele que eu jamais esquecerei. 
Posso argumentar, contra a história que os deuses te deram para interpretar, "por que tão jovem?' Aí, contra-argumentam que os especiais morrem jovens, e que a beleza da juventude te será eterna. O oceano parece ter feito uma concha, como mão de águas tão mornas, para guardar-te, para sempre, na alma dos oceanos que tanto amavas. E quando os teus olhos fecharam-se na eternidade, o azul, intensificado pelas últimas lágrimas de tristeza infinita, escapou para o mar, para os mares, quem pode argumentar que não seja verdade que a partir de então, as águas tenham ficado mais azuis, mais intensas? 
Eu poderia brigar com os deuses, mas, de que outra forma você existiria para mim senão morrendo jovem, tão lindo, o teu sorriso espalhando brancura pelas ondas, no ir e vir das praias do mundo, em cada lugar que desenhaste nos teus mapas, repercutindo teus sorrisos no brilho do sol na arrebentação, quebrando nas rochas como risos eternos da tua alegria, ou quando o mar se deixa aprisionar no âmago das conchas?
De que outra forma eu iria encontrar-te, se eu não lesse a tua última carta? Não importa a quem ela tenha sido destinada, ela foi escrita para mim. Porque, ao lê-la, eu encontrei a tua alma e te resgatei das ondas do tempo e da profundidade do espaço, e eu fico maravilhada comigo mesma, com o meu proceder, pois eu li a tua alma como se teus pensamentos fossem meus, como se  teus desejos fossem meus e eu te compreendi como compreendo a mim mesma. 
Um gentleman pode errar, na ânsia de acertar, mas não poderia jamais trair a si mesmo, não poderia ser jamais desonesto com o propósito de sua vida. 
Não fosse aquela carta, eu te veria , talvez, como os outros, não todos, muitos, de forma mais branda, não sei, mas haveria de escrever sobre um pirata à cata de tesouros, escondendo baús nas ilhas, sei lá porquê, porque é isso que se diz que piratas e corsários fazem, porque o mundo observa os fatos como quem observa pinceladas tortas e extremadas de uma criança que aprende a lidar com as cores, e erra; quando os desenhos, errados ou não, permanecem. Eu sei o quanto é difícil estabelecer fatos dentro da História, impossível medir a extensão dos erros cometidos pois é impossível cravar uma única exata realidade através da perspectiva de cada um. E existe, ainda, essa tendência humana de acreditar-se no que alguém escreve, ou diz, como fato verídico, sem sequer aplicar-se o benefício da dúvida, sem pesquisar, mais aprofundadamente, os acontecimentos. E, no que concerne aos contemporâneos, os mortos não falam e os que sobrevivem tem a vida inteira para defender-se; é a sua palavra contra o silêncio de um morto que não está presente para contar sua versão. Mas, eu enxerguei o ser humano dentro do homem, eu enxerguei a alma que não ousou morrer com o corpo e que seja eterna, e eis aqui aquele que eu encontrei.