CAPÍTULO VI
"Meu amado amigo! Não há nada neste mundo que faça
o julgamento da amizade mais verdadeiro do que o momento da morte,
para mostrar a atenção plena do amor e da amizade
da qual fará você agora uma perfeita experiência,
desejando que você mantenha o meu amor prezado,
morrendo pobre, como se eu tivesse sido infinitamente rico."
o julgamento da amizade mais verdadeiro do que o momento da morte,
para mostrar a atenção plena do amor e da amizade
da qual fará você agora uma perfeita experiência,
desejando que você mantenha o meu amor prezado,
morrendo pobre, como se eu tivesse sido infinitamente rico."
A pomba veio voando, desde o campanário, no sentido da terra, mudando de direção, em pleno ar, o voo rasante transformando-se em repentina ascensão rumo ao telhado do Colégio dos Jesuítas. Cortou trajeto sobre as telhas da construção, indo pousar no beiral de uma das janelas laterais do andar de cima. Arrulhou, baixinho, como cantiga de ninar que não se completa, ameaçando entrar; adoravelmente, volteando uma, duas vezes, e voando, de novo, para a imensidão do pátio, lá embaixo.
Lá dentro, Thomas, adormecido sobre o leito, assustou-se, sem despertar de todo, erguendo-se nos cotovelos, deixando-se cair sobre o lençol, caindo no sono, de novo, braços e pernas abertos, as mãos pendendo sobre as laterais da cama singela. A camisa de seda, em desalinho, absorvendo o suor que o envolvia completamente. Seu rosto estava sereno sob toda aquela transpiração que escorria até os cabelos, molhados e loiros, uma gota vindo morrer na curva do lábio, sob o bigode. Olhar para ele, assim, seria experimentar uma paz que só pode ser trazida pelos sonhos felizes de alguém que dorme sem arrependimentos, pelas cores suaves de uma aquarela nas mãos de um artista qualquer, ou pela esperança de um coração ardoroso que nunca desiste.
O barulho do mar era, apenas, um ruido de ondas, na distância, por detrás das paredes do colégio, quando as horas avançaram sobre todas as coisas; o pôr de sol, cheio de tons rosados, derramando-se na imensidão, invadindo cada recôndito até que as trevas estirassem seu manto de estrelas.
O barulho do mar era, apenas, um ruido de ondas, na distância, por detrás das paredes do colégio, quando as horas avançaram sobre todas as coisas; o pôr de sol, cheio de tons rosados, derramando-se na imensidão, invadindo cada recôndito até que as trevas estirassem seu manto de estrelas.
O Colégio dos Jesuítas estava silencioso demais, naquela noite, como se um sono divino se estirasse sobre todas as celas, todos os homens. O tempo avançou atropelando a escuridão, entrando pela madrugada, perpetuando o silêncio. Thomas estava relaxado demais, tudo o que ele precisava era de algumas horas de sono, muitas, em terra firme, longe das tempestades, das adversidades e temperaturas extremas do alto-mar. O calor, embora forte, não o afetava tanto, apenas fazia aumentar seu sono, tornando-o lânguido demais para alguém sempre muito ativo. Uma brisa suave avançou, um pouquinho mais, através da janela aberta, refrescando o aposento.
De repente, seu grito fez-se ouvir, ecoando pelos corredores e celas, pela escadaria que conduz ao térreo; meio abafado, talvez, não suficientemente alto para ser entendido como um pedido de socorro; tateou o revestimento, morrendo na acústica das paredes.
Thomas estava, finalmente, desperto. Olhava, com incredulidade, para os dois indígenas, diante dele, raciocinando se estaria, ainda, sonhando. Os dois pareciam, naquele momento, extremamente selvagens mas, estranhamente, nada agressivos. Um deles estava falando, ou tentando expressar-se, do melhor modo que podia, na língua dos portugueses; a imaginação os teria enrolado em uns panos. Tentando, desesperadamente, fazer-se entender, lançara-se ao chão, de joelhos, implorando pela ajuda de Cavendish: sua condição de escravo dos portugueses, a tortura à qual era submetido todos os dias de sua miserável vida fazia com que não tivesse vergonha, nem com que se sentisse humilhado diante do inglês.
Haviam fugido quando seus algozes escaparam sob o fogo dos ingleses. Estavam livres, agora, mas sabiam tratar-se de uma condição temporária pois, quando Cavendish e seus homens fossem embora, os portugueses voltariam para escravizá-los, bem como a seu povo.
Thomas Cavendish apertou o bigode, como se quisesse prolongar o tempo em um imenso momento de confusão. Poucas vezes não saberia como agir, quando pego de surpresa, e este era um desses momentos. A camisa desceu, suavemente, quase até os joelhos e ele tentou mover-se no apertado e discreto aposento dos religiosos que ocupara desde a chegada. Era o dia de santo Estevão, vinte e seis de dezembro.
Os índios haviam invadido por um dos muitos caminhos que ligavam o Colégio à praia, pelos fundos; conheciam bem as passagens por dentro da construção. Alcançaram a cabeceira de Thomas sem muito esforço e poderiam tê-lo matado, se quisessem. De joelhos, ainda, o selvagem, como a criança inocente que, talvez, fosse, afirmou que não estava, ali, para ofendê-lo mas para implorar ajuda; trazia perus e galinhas, como presentes.
Thomas segurou o índio pelos braços, forçando-o, gentilmente, a levantar-se. O índio já estava de pé quando ele começou a rir muito. Riu de toda a situação; riu de si mesmo. Riu por sentir-se tentado a ficar ali e viver uma vida, desafiadoramente, selvagem. Sabia que seu destino era outro. O que ninguém sabia é que o mar entrara em seu sangue. Não era a aventura que o seduzia, não era o ouro, tão necessário no reino e suas tentações. Estava viciado naquele mar que, na maior parte das vezes, apresentava-se fora de controle e mortal. Era um vício e ele sabia disso. Sabia que morreria no mar, algum dia, quando fosse velhinho demais para comandar uma flotilha ou mesmo um navio; ou mesmo um simples barco a remos. Ele, Thomas Cavendish, sabia que morreria no mar. Algum dia....